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Os "planos ferroviários"
Brasília e os planos de viação
Flavio R. Cavalcanti - Fev. 2013
A discussão de ferrovias para a “futura” capital, no planalto central do Brasil, começou em 1852, quando Holanda Cavalcanti propôs no Senado do Império a escolha de um local — e a imediata construção de ferrovias para ligá-la aos rios navegáveis mais próximos, que estenderiam essas ligações às diversas regiões do país, procurando, tanto quanto possível, “direções opostas”.
Não que as duas ideias — a capital no centro do país e a estruturação do espaço nacional por vias partindo dela em todas as direções — fossem originais. Ambas estavam bem nítidas, com diferentes propósitos, no discurso atribuído ao primeiro-ministro inglês William Pitt durante as guerras napoleônicas; na série de artigos publicados por Hipólito José da Costa no período entre a migração da Corte portuguesa e a independência do Brasil; e no projeto esboçado por José Bonifácio de Andrada e Silva desde a Constituinte portuguesa até a Constituinte brasileira — com parceria de Hipólito e outros.
Para Pitt, tratava-se de fundar uma “Nova Lisboa” no centro do Brasil e abrir estradas em todas as direções, para anexar as colônias desgarradas da Espanha invadida por Napoleão — enquanto Hipólito e José Bonifácio desenhavam a fundação de uma nação, tomando lições da Holanda e dos Estados Unidos, cujo desenvolvimento econômico demonstrava a importância da tolerância religiosa e da divisão da terra para atrair colonos, artesãos, técnicos e capitais.
E a época da migração da Corte até o primeiro ano da independência foi, mesmo, de planejamentos. Para a Corte portuguesa instalada no Brasil tratava-se de recriar o sempre sonhado “poderoso império”. Porém os planos, longamente discutidos desde alguns séculos e imediatamente postos em execução, apontavam para o fortalecimento de uma “nobreza” latifundiária em torno do Rio de Janeiro — investindo-se na infraestrutura da região próxima (Sudeste) e nos experimentos de aclimatação de plantas tropicais da África e da Ásia, em busca de culturas de exportação para o mercado europeu. Ao invés de agricultores, artesãos e técnicos escravos para desenvolver extensas monoculturas. Nenhum plano de interligação das regiões ou de estímulo ao comércio entre elas.
A consolidação do projeto “absolutista” — com o exílio dos Andradas — lança um véu de esquecimento sobre qualquer proposta divergente, e de 1839 a 1849 Adolfo Varnhagen pode tranquilamente “recriar”, como se nada soubesse, uma proposta “limpa”, montada com partes “higienizadas” dos projetos de Pitt, Hipólito, Bonifácio e até da Confederação do Equador, que alega ignorar. Nada de “Nova Lisboa” a serviço do imperialismo inglês, nada de muito “republicano”, muito menos “malvadas ideias francesas”. É uma aproximação diplomática, burocrática, manhosa, tricotada com alguns membros do Instituto Histórico do Rio de Janeiro — o próprio centro da construção de uma identidade “nativista” e de uma “história” adequada. Em 1851 vem ao Brasil e publica sua proposta na revista Guanabara.
É nesta sequência que, em 1852, Holanda Cavalcanti transforma a proposta em projeto de lei, detalhando uma verba de 4 mil contos de réis para “reconhecimento do terreno, sua demarcação e registro, desapropriação da propriedade particular, e construção de caminhos de ferro”.
A inovação*, portanto, está na proposta de “caminhos de ferro”, — ao invés de “estradas”, genericamente, — apesar de limitá-los ao alcance dos rios navegáveis mais próximos, pelos quais a “comunicação” da nova capital se estenderia aos quatro cantos do país. Este aliás, era um dos sentidos fundamentais da escolha do divisor de águas das três grandes bacias fluviais — do Prata, do São Francisco e do Tocantins-Araguaia, — divisor que se estende pela chapada dos Parecis em direção ao alto Cuiabá e ao Mamoré, outro “varadouro” a facilitar a conexão das hidrovias em uma rede de “comunicação” interior.
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(*) Após Varnhagem haver definido o local exato de Brasília, na proximidade das lagoas Feia, Formosa e Mestre d’Armas, Holanda Cavalcanti tentou inovar também nessa localização, levando-a um pouco mais ao norte, entre “as latitudes de 10 e 15 graus sul”, o que situaria a nova capital a oeste da Bahia, afastando-a excessivamente da região Sul — e bastante do Sudeste, que na época ainda disputava poder com o “Norte” (Nordeste).
Em 1852, a ferrovia tinha apenas 27 anos de existência comercial na Inglaterra e, embora já despertasse entusiasmo dos visionários, ainda estava longe de suplantar a era dos canais de navegação. Também tinha 27 anos o Canal do Erie, ligando o rio Hudson ao mais próximo dos Grandes Lagos, que daria a Nova Iorque a supremacia definitiva sobre outros portos da costa leste, até então bastante competitivos.
É importante observar, no entanto, um acontecimento quase “invisível”, de tão escamoteado pela historiografia ferroviária tradicional: — A decisão do “capitalismo inglês de liberar a exportação de bens de capital, por volta de 1850.
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Extensão das ferrovias
(em milhares de quilômetros) |
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1840 |
1850 |
1860 |
1870 |
1880 |
Europa |
2,7 |
23,3 |
51,3 |
101,9 |
163,7 |
América do Norte |
4,5 |
14,6 |
52,6 |
90,1 |
161,9 |
Índia |
- |
- |
1,3 |
7,7 |
15,0 |
Restante da Ásia |
- |
- |
- |
- |
- (*) |
Australásia |
- |
- |
- (*) |
1,9 |
8,7 |
América Latina |
- |
- |
- (*) |
3,5 |
10,1 |
África (inc. Egito) |
- |
- |
- (*) |
1,0 |
4,7 |
(*) Menos de 800 km (500 milhas, no original)
Fonte: Hobsbawn, 2009 |
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Apesar da linha de Havana a Guines ter sido aberta em Cuba em 1837, — e apesar do papel gasto a historiar minúcias das garantias oferecidas antes ou depois de determinadas datas, — é após 1850 que de fato se começam a construir ferrovias fora da Europa e dos EUA. Na América do Sul, o primeiro trecho de 14 km foi inaugurado no Peru em 1951; a primeira ferrovia do Chile, iniciada em 1849, abriu seu primeiro trecho em 1852. No Brasil, Mauá obteve sua concessão da província do Rio de Janeiro em 1852 e inaugurou o primeiro trecho de 14,5 km em 1854.
É nesse contexto, portanto, que em 1852 Holanda Cavalcanti adiciona, à proposta de uma capital no centro do país, a proposta de construir algumas ferrovias em direção aos rios navegáveis mais próximos. Esta colocação da ferrovia como elo complementar à navegação não significava “timidez”. Pelo contrário, propunha o mais avançado.
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