Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande
Uma viagem de férias em 1929
Carlheinz Hahmann
ABPF Boletim, (Jan.-Mar. 1980)
Centro-Oeste nº 83, (1º Out. 1993)
Quem vive em São Paulo e tem carro, certamente já deve ter passado pelo complexo de pontes e viadutos conhecido por "cebolão", na confluência dos rios Tietê e Pinheiros.
Sempre que passo por ali, vem à minha memória um acontecimento que muito me impressionou, 50 anos atrás, quando era um menino de 7 anos.
Minha primeira grande viagem de trem foi em Janeiro do ano de 1929, de São Paulo até Ponta Grossa, PR, em companhia de minha mãe. Esta viagem foi de tal forma tumultuada que, apesar dos meus 7 anos de então, os pontos altos ficaram bem gravados em minha memória.
A partida se deu na antiga estação da Sorocabana — que por um curto período chegou a tornar-se nosso Museu Ferroviário, e cujos remanescentes acabaram de ser demolidos para dar lugar ao que tão orgulhosamente chamamos de progresso.
A máquina que nos ia puxar era uma das, então, recém-introduzidas locomotivas Krupp. Isto eu podia ler, pois já tinha terminado o meu primeiro ano primário, e a placa do fabricante, nestas máquinas, era afixada à cabine do maquinista, logo abaixo da janela.
A viagem até o Paraná não apresentou coisas memoráveis, a não ser que, tendo partido de São Paulo em torno das 4 horas da tarde, o jantar era servido no carro restaurante, antes deste ser desligado do trem ao anoitecer, provavelmente em Iperó. Lembro-me disto por ter sido meu primeiro jantar em carro restaurante, seguido pelo desapontamento em saber que esse lindo carro não seguiria a viagem até o fim.
O carro dormitório, na cauda do trem, era daquele tipo original do Mister Pulman, cujas camas durante o dia serviam de assentos estofados, justapostos, de modo que se ficava frente à frente com outros 2 passageiros. Ao anoitecer, enquanto as pessoas jantavam no carro restaurante, as poltronas eram transformadas em camas; eram abaixadas as camas superiores; e puxadas as cortinas, transformando o carro em dormitório, com as camas ao longo de um corredor central.
É claro que, nestas condições, logo se começava a conversar com os companheiros de viagem. Frente à frente comigo e minha mãe, estavam sentadas uma senhora e uma menina, esta mais ou menos de minha idade.
Bem, após uma noite um tanto sacolejada, o guarda do carro acordou todos os passageiros, ainda de madrugada, pois o trem estava se aproximando de Jaguariaíva, onde pararia por meia hora para podermos tomar café no refeitório da estação.
Em seguida, o trem percorria os vastos pinheirais do Paraná, rumando sempre para o sul e parando com alguma frequência, para abastecer o tênder da máquina com água, ou então com lenha, que era simplesmente jogada dentro do tênder pelo pessoal da locomotiva, que parava ao lado de extensos lenheiros empilhados ao lado da linha, longe de qualquer estação.
Chegamos a Ponta Grossa perto de 1 hora da tarde e nossos parentes nos receberam com grande alarde na plataforma da estação. A tarde desse dia foi para mim repleta de coisas novas, na casa dos parentes, onde ficamos hospedados, quando ao cair da noite meu tio chegava com a notícia de que nosso trem, seguindo viagem para Curitiba, havia tombado — e que justamente no carro dormitório houve mortes. Nunca fiquei sabendo se aquela gentil senhora e a menina, com a qual eu tanto havia conversado, e que segundo sabíamos estavam a caminho de Curitiba, sobreviveram ou não.
Após 4 semanas, o nosso plano era de voltar para São Paulo, pois logo mais recomeçariam minhas aulas.
Porém, no dia em que meu tio foi à estação reservar nossos lugares em carro dormitório, para a viagem de retorno, surgiu nova má notícia. São Paulo estava com as várzeas dos rios Tietê e Pinheiros alagadas, e não se tinha nenhuma certeza se os trens poderiam ou não se aproximar da cidade.
Minha mãe, pessoa bastante decidida, resolveu que de qualquer maneira iríamos tentar, e assim partimos para a viagem de retorno.
A viagem percorreu sem novidades até Osasco, já bem perto de São Paulo, onde o trem parou mais demoradamente e o chefe de trem e seus auxiliares esclareceram aos viajantes que o trem prosseguiria viagem, mas que frente àquela estação havia um número de charretes, que poderiam levar os mais receosos para São Paulo por estrada de rodagem.
Novamente minha mãe se mostrou decidida, achando que, se o maquinista e todos estes ferroviários tinham confiança no que estavam fazendo, poderíamos tranquilamente confiar a nossa segurança a eles. E assim, ficamos sentados em nossos lugares.
O trem partiu, passou pela estação de Presidente Altino e, com uma velocidade bem reduzida, se aproximou do rio Pinheiros. Que espetáculo! Eu estava debruçado na janela, minha mãe me segurando pelas calças, e tentava compreender o que iria acontecer agora. Enfim, estávamos no último carro do trem, e eu queria ver o que se passava com a locomotiva.
Devo explicar que em 1929 ainda não existia o aterro atual, nem a ponte de aço removida recentemente para dar lugar à moderna estrutura de concreto que cruza o rio Pinheiros, e o sistema viário conhecido como "cebolão".
Naquela ocasião, havia um aterro de linha singela, bem mais baixo e mais próximo à confluência dos rios; e uma ponte de aço com as treliças para o alto. Esta ponte, eu podia ver, lá na frente, em meio a um imenso lençol de água.
A locomotiva já havia alcançado o ponto onde as águas começavam a cobrir os trilhos, numa velocidade menor que a de um homem andando lentamente. Avançando com esta velocidade, após alguns minutos a máquina alcançava a ponte. Atrás de nós, o lençol de água ia crescendo. A água agora deveria alcançar bem mais de um palmo acima do nível dos trilhos, pois um menino sentado nos degraus da plataforma de nosso carro conseguia, segurando-se no corrimão, mergulhar um pé na água, fazendo-a espirrar alegremente.
Logo, o nosso carro também passava pela ponte e podia-se observar que a máquina estava aproximando-se do ponto onde os trilhos novamente surgiam das águas, em linha reta, rumo a São Paulo. Quando a máquina alcançou terra firme, com um longo e estridente apito, os passageiros do trem ficaram eufóricos, abanando os braços e chapéus e gritando de alegria.
Como soava bem o chá-chá-chá-chá da chaminé de nossa locomotiva naquele momento em que o maquinista havia aberto o regulador e o trem entrava firmemente na rampa, deixando a baixada e o lençol de água atrás de si.
O que narrei aqui aconteceu há meio século, e poucos dos que hoje percorrem de carro o "cebolão", contornando a cidade de São Paulo pelas vias marginais dos rios Pinheiros e Tietê, poderão imaginar o que se passou ali, tanto tempo atrás.
Qual não foi minha alegria, porém, quando há algum tempo encontrei num "sebo" um exemplar do livro do engenheiro Prestes Maia, de 1930, sobre seus planos para a cidade de São Paulo. E, neste livro, fotos aéreas das enchentes que eu, quando menino, havia atravessado de trem...
Para quem queira confirmar a minha narração, recomendo procurar este livro, possivelmente numa biblioteca pública, para obter uma noção de grandeza daquele acontecimento, pois o mesmo cita que a largura deste lençol de água chegava a 1 km.
Para mim, mais importante ainda que a inundação, por si, foi o trabalho dos ferroviários, desconhecidos porém merecedores de todo o meu respeito, que não temeram as intempéries e cumpriram simplesmente o que consideravam sua obrigação.
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