A unificação das bitolas ferroviárias (II):
— O caso das ferrovias
dos Estados Unidos e Canadá
Délio Araújo
Centro-Oeste nº 68 (1º-Jul-1992)
Costumamos ter uma ideia incompleta dos sistemas ferroviários:
imaginamos as estradas de ferro como se tivessem sido do mesmo padrão
que o atual e como se seus problemas técnicos, econômicos e mercadológicos
tivessem sido resolvidos por uma comissão de altíssimo nível em
assuntos de Engenharia ferroviária.
No artigo anterior, vimos a Inglaterra deixando de lado os predicados
da sua exdrúxula bitola extra-larga e preferindo, apesar dos elogios
de um comitê governamental, a bitola então corrente no país.
Nos EUA, ocorreu algo parecido.
O sistema ferroviário americano cresceu de forma desorganizada
e heterogênea. Assim, em 1865, ao romper a Guerra Civil, o rio Mississipi
era atravessado somente por uma ponte ferroviária e os demais pontos
de travessia eram cobertos por ferry boats.
Cidades importantíssimas, na mesma época, como Filadélfia e Richmond,
eram servidas por ferrovias que não se conectavam entre si. Praticamente
cada estrada de ferro obedecia a um fuso horário independente.
Além disso, ocorriam outros fatores sumamente negativos, entre
os quais o tráfego de guerra logo apontou, como fator básico de
ineficiência mercadológica, a diversidade das bitolas. Em 1871 havia
nada menos que 23 bitolas. Sim, 23 bitolas! A mais larga era de
6 pés e a mais estreita era de 3 pés. Mais tarde, algumas linhas
de bitola de 2 pés foram construídas.
Na década de 1860, especialmente em decorrência da guerra civil,
o problema das bitolas começou a ser discutido e algumas soluções
temporárias foram adotadas. Na década de 1870 algumas dessas soluções
temporárias eram de uso comum.
Uma delas consistia em dotar os vagões e carros com "rodas de compromisso",
isto é, rodas bem largas, de modo que podiam circular em bitolas
de larguras muito próximas. As "rodas de compromisso", no entanto,
causavam sérios movimentos laterais nos veículos. Foram causa de
acidentes graves.
Outro expediente consistiu em adotarem-se rodas deslizantes que
podiam ser deslocadas ao longo dos eixos. Esse expediente, caro
e pouco confiável, não provou ser a solução. Entre seus defeitos,
estava a dificuldade em centralizar com precisão as rodas. Um pequeno
erro de centralização podia levar a tombamentos terríveis.
Duas grandes ferrovias da época, a Erie e a Illinois Central, de
bitola de 5 pés, não podiam utilizar "rodas de compromisso" nem
rodas deslizantes e, por isso, desenvolveram sistemas de gruas que
levantavam os veículos e lhes trocavam os truques. Em certos casos,
foi usado o terceiro trilho. Todavia, nenhum desses expedientes
demonstrou ser economicamente recomendável.
Não havia, pois, solução a não ser a unificação das bitolas.
Em 1861, cerca de 54% da extenção ferroviária dos EUA adotava a
bitola padrão, isto é, 4 pés e 8,5 polegadas. No sul do país, era
comum a bitola de 5 pés, mas havia também a bitola de 5 pés e 6
polegadas. No estado de Nova Jersey predominava a bitola de 4 pés
e 10 polegadas.
A ferrovia Erie, com linhas no estado de New York, Pennsylvannia,
Ohio, Indiana e Illinois tinha 6 pés. O estado do Maine, atravessado
por uma linha canadense (hoje CP Rail — Canadian Pacific), tinha
5 pés e 6 polegadas. Seria longo descrever outros casos singulares.
Por isso, os deixamos de lado.
Em 1863, ao ser autorizada a bitola padrão para a primeira transcontinental,
hoje Union Pacific, o Congresso o fez pressionado pelos interesses
financeiros do leste do país: era mais barata, mais rápida de construção
e, na prática, apresentava rendimento, em termos de transporte real,
igual ao rendimento dos "bitolões". No entanto, o presidente Abraão
Lincoln preferia bitola de 5 pés, comum na Califórnia e no Sul.
O interessante, no caso das bitolas dos EUA, é o fato da rapidez
com que ocorreu a uniformização das bitolas. Sob o ponto de vista
de retorno do investimento, reduzir as bitolas largas à bitola predominante
(hoje bitola padrão ou standard gauge) era muito mais atraente.
Portanto, as condições relativas à superioridade técnica da bitola
de 5 pés, e de outras bitolas mais largas ainda, passavam para segundo
plano.
E a redução da largura das bitolas traria mais vantagens ainda:
1) a redução é mais rápida e fácil, pois onde passa o largo, passa
o estreito; 2) os veículos poderiam simplesmente ter os truques
trocados e os truques de bitolas largas poderiam, em fase posterior,
ser parcialmente adaptados; 3) a redução das bitolas das locomotivas,
especialmente das fabricadas pela Baldwin (que as fabricava prevendo
a redução), era mais fácil; 4) o planejamento das operações de redução
de bitola era mais fácil que o planejamento do alargamento.
Apesar do decreto presidencial que fixava a bitola em 5 pés, as
empresas ferroviárias se baseavam na autorização da bitola padrão
da primeira transcontinental para adotar esta última como a que
mais correspondia às exigências de rapidez, de economia de capital
e de desempenho real.
Assim, a Illinois Central, na sexta-feira, 29 de Julho de 1881,
mudou, entre o nascer do dia e as 15 horas, 876 km de linha tronco,
da bitola de 5 pés para a bitola padrão. A Erie, outra grande empresa
ferroviária da época, reduziu a bitola em todo o Estado de New York
no domingo, 22 de junho de 1880. Ambas as empresas simplesmente
jogaram um dos trilhos para dentro e trocaram os truques dos veículos.
As ferrovias do Sul, em conferência realizada em Atlanta, em 2
de fevereiro de 1886, concordavam em estreitar a bitola. Ficou determinado
que, nos dias 31 de maio, segunda-feira, e 1° de junho, terça-feira,
teria lugar o estreitamento. Uma das empresas, a Louisville, hoje
componente do sistema CSX, estreitou aproximadamente 3.000 km de
linhas!
O planejamento do estreitamento foi baseado na experiência bem
sucedida da Illinois Central. Só no dia 31 de maio de 1886, nada
menos que 10 grandes ferrovias da região do Oeste estreitaram a
bitola e, no Leste, a maior unificação ocorreu no dia 1° de junho.
Interessante foi o alargamento da bitola de 3 pés da conhecida
Denver & Rio Grande Western. A então linha-tronco de Denver a Salt
Lake City e Ogden, passando por Colorado Springs, Salida, Pueblo,
Minturn, Glenwood Springs, constituiu o maior alargamento dessa
bitola. Hoje, a Rio Grande é empresa sólida e faz parte de ligações
transcontinentais.
Pode-se, pois, dizer que a unificação das bitolas, nos EUA ficou
concluida em 1886. Foi mais tumultuada que a unificação da Inglaterra,
mas apresentaram coincidências significativas.
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Em ambos os casos, o alargamento geral seria financeiramente
danoso, devido aos custos e ao baixo retorno do alargamento
em si.
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Em ambos os casos, venceu o mercado, em nível de país, e não
a defesa do mercado zonal de uma ferrovia revestida de pressão
política ou grupos interessados em obras avultadas.
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Em ambos os casos, optou-se pela solução de mais rápida implantação
/ conversão.
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Em ambos os casos, como se tratava de empresas privadas — a
Inglaterra ainda estava longe da estatização das ferrovias —,
prevaleceu o critério financeiro, em especial no caso dos EUA
Se em 1861 somente 54% da rede ferroviária norte-americana adotava
a bitola padrão, em 1886 mais de 96% da rede estadunidense de trilhos
estava uniformizada nessa bitola. Restavam umas poucas linhas, em
geral de 3 pés, todas de interesse local bem definido.
Pelas décadas de 1950 e 1960, praticamente haviam todas desaparecido,
pelo esgotamento da carga por elas transportada. Ainda restam, nos
estados do Colorado e do Novo México, trechos turísticos que pertenceram
a uma das linhas da Rio Grande, dos quais o mais conhecido percorre
o famoso trajeto Durango-Silverston.
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