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Ferrovia Transnordestina*
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Se o noticiário de 6 Jun. 2006 sobre o início das obras da Transnordestina tivesse sido ensaiado repetidas vezes — com a participação de todas as partes envolvidas — para embaralhar fatos com pretensões, ocultar impasses e desinformar (in)definições concretas, é de se duvidar que desse tão certo.
O trecho aprovado e iniciado tem apenas 110 km (R$ 200 milhões), e é o único que se enquadra tanto no projeto original da Transnordestina, quanto no projeto pretendido pela CFN, batizado de Nova Trans. Poder ter sido aprovado exatamente por isso: Para iniciar alguma parte, que fosse, de um projeto (qual deles?) cuja definição permanecia emperrada por conflitos de concepção, e oferecer algo que os aliados locais pudessem utilizar na campanha eleitoral.
A maior parte do noticiário seguiu a mesma estrutura — dois parágrafos, em seqüência, dando a entender que o projeto inteiro (da Nova Trans) já estaria definido e aprovado. No primeiro, noticiava-se que o presidente da República assinou a ordem de serviço para o início das obras, sem frisar em demasia que se tratava de apenas um trecho. No segundo parágrafo, lançavam-se os números do projeto completo. O prazo de conclusão, previsto para o ano de 2010, foi atribuído ao projeto "completo", o que soa, no mínimo, improvável, caso a opção seja mesmo pela Nova Trans (1.800 km a construir, retificar, alargar).
O presidente foi ambíguo, afirmando que "o projeto não é para amanhã, é para 15, 20 anos" — o que tanto poderia se referir ao projeto "completo", quanto aos alardeados efeitos econômicos.
Quanto à obra, propriamente dita, só começaria de fato 40 dias depois (17 Jul. 2006), quando a legislação eleitoral já não permitiria a liberação. Também não houve indicação convincente de que o trecho inicial vá ser construído já na bitola de 1,60 m. Aliás, nem de que o alargamento pretendido pela CFN para outras linhas existentes tenha sido aprovado. Nem descartado.
Esse trecho inicial, por si só, pouco significa, pois o trajeto do Ceará ao Recife é mais curto pela linha da Paraíba, já existente. E só começará a fazer sentido depois da construção de um segundo trecho, ligando Salgueiro ao porto de Petrolina, no rio São Francisco — onde chega a linha de Salvador. Então, sim, começaria a se desenhar uma rede de transporte ferroviário interligando, por rotas mais curtas, as principais cidades industriais do Nordeste, do Maranhão à Bahia, tendo a navegação do rio São Francisco como coletor de cargas do oeste baiano e como tronco alternativo (e mais econômico) para o Sudeste.
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Isto, se for seguido o projeto original da Transnordestina. Não houve indicações inequívocas de quando o segundo trecho será iniciado — nem de qual projeto será seguido. Talvez ainda não se saiba, com toda certeza? De acordo com o novo ministro da Integração Nacional, semanas antes, o segundo trecho irá a Petrolina, e só será iniciado dentro de 3 anos, que seria o prazo de construção do primeiro trecho [« Em uma segunda etapa da construção da Transnordestina, prevista para ter início daqui a três anos, após o término da fase atual, a ferrovia vai avançar em Pernambuco e Bahia. A idéia é levar os trilhos desde Salgueiro (PE) até os municípios de Juazeiro e Petrolina (BA), considerados o maior eixo produtor de frutas do País » Economia, Claude Bornél, O Povo, 26/05/2006 ]. Informação do Ministério dos Transportes à imprensa, em Fev. 2006, também dizia que "o projeto (...) permitirá a integração da Malha do Nordeste e a articulação com a navegação do rio São Francisco na divisa de Pernambuco com a Bahia (Petrolina/Juazeiro)"; e que o Plano Plurianual 2004-2007 prevê recursos de R$ 1,5 bilhão, do BNDES e do Finor — valor e desenho compatíveis com o projeto original. Mas, após a cerimônia presidencial, o diretor da CFN, Jorge Mello, afirmou que, de Araripina, a ferrovia irá diretamente para o sul do Piauí [« Ele diz que após a conclusão do trecho inicial, o segundo irá de Salgueiro até Araripina (PE). Em seguida serão quatro trechos simultaneamente: Salgueiro ao Porto de Suape (PE) e vice-versa (sic), Araripina a Eliseu Martins (PI) e Porto do Pecém a Missão Velha. » Economia, O Povo, 17/06/2006]. Oscilações tão diametrais na descrição de um projeto, a tão poucas semanas de seu suposto lançamento oficial, são no mínimo inquietantes. O BNDES, que responde pela racionalidade econômica da aplicação de boa parte dos recursos reivindicados, não tem dado mostras de grande entusiasmo pelo abandono do projeto original e adoção do projeto novo, mas compreende-se que evite manifestar opiniões fora do padrão técnico, e através da imprensa. Na prática, tudo indica que seja um dos principais focos de resistência à alteração, com base em estudos técnicos Menos prudência talvez tenha havido no Ibama do Pernambuco: seu superintendente local chegou a criticar a desvantagem econômica do novo trajeto para esse Estado [« João Arnaldo Novaes disse ao Jornal do Commercio, de Recife, (...) que ''Pernambuco fica totalmente prejudicado'' pelo novo projeto. (...) ele disse estranhar o governo pernambucano ''estar apoiando um projeto (da CFN) onde os maiores benefícios serão para o Ceará”, aceitando a desativação do ramal entre Salgueiro e Suape, para ser refeito em outro traçado. Novaes diz que se a proposta da CFN for adiante, Pernambuco seria apenas passagem para um projeto cearense. Noutros termos, em vez de Transnordestina, seria Transcearense » ("Fogo amigo na Transnordestina", Vertical S/A, Jocélio Leal, O Povo, 03/06/2005)]. O destempero do superintendente talvez se explique pelo fato de que, apenas 30 dias antes, estava oficialmente encarregado de estudar o impacto ambiental do projeto original — o que pode sugerir tudo, exceto racionalidade e integração dos órgãos técnicos do governo na definição de uma obra desse porte [« Novaes declarou que percorreu Petrolina (PE), Salgueiro (PE) e Crato (CE), entre os dias 27 e 30 de abril, fazendo audiências públicas como última etapa do Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima) de dois trechos ferroviários descartados pelo projeto da Nova Transnordestina da CFN. (...) Segundo o jornal, para estudar o traçado, o Governo teve custo de R$ 1 milhão » ("Fogo amigo na Transnordestina", Vertical S/A, Jocélio Leal, O Povo, 03/06/2005)]. A recusa do Ibama em liberar a obra de retificação — na verdade, uma linha inteiramente diferente, de Arcoverde a Salgueiro —, por não haver estudo de impacto ambiental dessa nova localização da linha, tornou público que não existia projeto de engenharia do novo trajeto ferroviário a ser construído nesse trecho. Em resumo: não se sabia exatamente por onde iria passar. Um retorno alarmante às obras iniciadas sem projeto — caminho certo para inviabilizar a fiscalização, e tornar insolúvel (de forma objetiva) qualquer eventual desacordo governo X empresário. Enfim, ficou claro que o Pernambuco não aderiu por completo ao projeto novo: Há divisões. A Nova Trans sofre forte oposição, também, do governo da Bahia [« O secretário de Planejamento da Bahia, Armando Avena, criticou nesta terça-feira (6) o traçado... » (06/06/2006 - BRNordeste) || « A Bahia é favorável à criação da Ferrovia Transnordestina, porém com o traçado original, partindo do pólo Juazeiro / Petrolina, aglomerado urbano que surge como a capital do cerrado nordestino, indo até o município de Salgueiro, em Pernambuco, para daí atingir os portos de Suape e Pecém. (...) O novo traçado sairá de Eliseu Martins, no Piauí, região de baixíssima densidade econômica e, passando ao largo do maior pólo de desenvolvimento regional (...). "Não há mágica estatística que dê viabilidade econômica a esse trecho”, critica Avena. » (Notícia, Bahia, Infra-estrutura, Jornal da Mídia, 09/03/2006)]. Outro Estado onde o projeto novo não agradou, é o Rio Grande do Norte [Exposição de motivos do deputado Ney Lopes (PFL-RN), que reivindica a recuperação de todas as linhas do Nordeste, afirma que o atual projeto da ferrovia "exclui criminosamente o Rio Grande do Norte". Defende o projeto original, visando integrar toda a rede do Nordeste]. E mesmo o porto de Mucuripe (Fortaleza, CE), se não se opõe frontalmente, promete fazer muita pressão para evitar o monopólio do porto de Pecém [« Essa luta, pelo que se observa, promete e vai exigir a construção de um bom ramal de pressão política. » Colunas, Vertical, O Povo, 09/03/2006.], o que ressalta um aspecto já nítido no projeto defendido pela CFN: foi desenhado para atender um grupo de empresas e investidores, e não a partir de uma análise prévia da economia e dos problemas de transporte da região. Com qual projeto?A questão do projeto de engenharia — detalhamento concreto da obra e do terreno — vai além de minúcias que pudessem interessar apenas a especialistas, burocratas, ou defensores do meio-ambiente. Supõe-se, em geral, que a definição prévia do projeto de engenharia — tanto quanto dos recursos — seja requisito mínimo para o início de uma obra que irá utilizar recursos públicos. Com mais razão, se o custo "estimado" (não pode haver orçamento, sem projeto de engenharia) vaga pela casa dos R$ 4,5 bilhões, e os parceiros privados se propõem a responder por uma parcela mínima. Ao que tudo indica, o único projeto de engenharia ("projeto executivo") que existia, até o momento, refere-se ao trecho de Salgueiro (PE) a Missão Velha (CE). Daí por que apenas esse trecho pôde ser aprovado. No entanto, é um projeto de engenharia elaborado dentro dos parâmetros (e objetivos) originais da Transnordestina [« Já estão nas mãos do coordenador ferroviário do DNIT, José Passos, vários volumes do projeto executivo do primeiro trecho da Transnordestina: 120 km entre Salgueiro (CE) e Missão Velha (PE). O Projeto (desenvolvido pela Enefer) foi entregue a Passos na última semana e ficou pronto primeiro porque o trecho pertence ao mesmo tempo aos projetos da “antiga” e da “nova” Transnordestina, e já estava encaminhado. | Segundo Passos, se a CFN quiser é só licitar. As especificações principais são: trilho UIC, rampa máxima de 0,6% nos dois sentidos, dormentes de concreto e curva mínima de 500 m de raio e bitola larga » ("Transnordestina já tem projeto executivo", Revista Ferroviária, 27/4/2005)]. A bitola de 1,60 m, a rampa máxima de 0,6% e o raio mínimo de 500 metros diferem claramente das especificações de outro projeto de engenharia, encomendado pelo governo federal em 1987 (raio mínimo "pouco acima" de 300 m / rampa máxima compensada de 1,5%), mas não alcançam as características da EF Carajás (raio mínimo de 859 m / rampa máxima compensada de 0,4%), com a qual a CFN "ameaça" competir, apesar do trajeto mais longo até Pecém. Trata-se, na verdade, de aproveitamento — improvisado — de projeto de engenharia encomendado e pago com verbas destinadas à Transnordestina original [« O diretor do DNIT informou ainda que já assinou com os estados nordestinos, incluindo o Ceará, convênios para a elaboração dos projetos executivos relacionados à Ferrovia Transnordestina. Esse empreendimento objetiva integrar a região, através de vias férreas que atenderão principalmente ao transporte de cargas. ''Para o Ceará, nós estamos liberando R$ 4,5 milhões. Com essa verba, o governo estadual já poderá realizar o projeto executivo do trecho Crateús - Piquet Carneiro da Transnordestina'', adianta Mota Filho. » ("A ferrovia dos sonhos", Colunistas, Vertical, O Povo, 06/01/2004)]. Está em elaboração o projeto de engenharia de um segundo trecho, em direção a Araripina, que não fazia parte da Transnordestina original — mas da chamada Ferrovia do Gesso —, levando os trilhos na direção do sul do Piauí [« O segundo trecho a ser construído da Transnordestina será o que vai de Salgueiro a Trindade, com uma extensão de 190 quilômetros. O projeto executivo desse trecho deverá ser entregue em outubro » ("Transnordestina começa na segunda-feira", 14/07/2006 - Jornal do Commercio)]. Press dropsO custo do trecho iniciado (110 km / R$ 220 milhões) quase não foi citado no noticiário do dia. No entanto, aparecia com nitidez dois meses antes, em 11 Abr. 2006 [« A Ferrovia Transnordestina, projeto da ordem de R$ 220 milhões em sua primeira fase, vai sair do papel a partir do próximo mês, informou ontem, em Fortaleza, o ministro Pedro Brito (Integração Nacional), acrescentando que, na fase inicial, o projeto interligará Salgueiro (PE) a Missão Velha (região do Cariri). » Colunas, Vertical, O Povo, 11/04/2006]. No dia do evento, o foco do noticiário foi o valor do projeto completo (1.800 km / R$ 4,5 bilhões). Além disso, o prazo do trecho iniciado (110 km: conclusão em 2010) foi geralmente atribuído ao projeto completo (1.800 km). A confusão parece ter partido do próprio Ministério da Integração Nacional — o mesmo que, duas semanas antes, informava com clareza um prazo de 3 anos apenas para o primeiro trecho, e que só então teria início o segundo, e em outro rumo, implicando em custo bem menor [« A informação é da assessoria de imprensa do Ministério da Integração Nacional. O investimento total é da ordem de R$ 4,5 bilhões e a previsão é que as obras sejam concluídas em três anos. O projeto a ser inaugurado em pouco mais de uma semana [?] tem 2 mil quilômetros de extensão (...). » Economia, Claude Bornél, O Povo, 26/05/2006. || « Toda a ferrovia, a ser tocada pela Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN), afirma Brito, será executada num prazo total de quatro anos e receberá injeção global de R$ 4,5 bilhões. » Economia, Eliomar de Lima, O Povo, 13/06/2006]. A imprensa regional, escalada para um evento eminentemente político, talvez não estivesse preparada para distinguir a desproporção do ritmo necessário, nem deve ter tido muito tempo, entre a hora do evento e o deadline dos jornais. Só a "reconstrução" de um pequeno trecho entre o Recife e Propriá, em Alagoas, vai exigir 20 meses, devendo ficar pronta, portanto, apenas em 2008. E trata-se de meros 600 km, em leito que já existiu, bitola métrica, sem pretensões de alta velocidade — coisa de R$ 111 milhões. Empate técnico?Na hipótese (impensável) de que o governo alimentasse a pretensão de apenas empurrar com a barriga as pretensões da CFN e seus parceiros, o feitiço poderia acabar se virando contra o feiticeiro — o grupo Vicunha já deu mostras suficientes de resistência (e capacidade de agregar aliados), para que alguém cometa a ingenuidade de imaginar engambelá-lo. Resta a hipótese, bem mais digna, de que o governo esteja tentando equilibrar dois projetos — atendendo de forma pontual à CFN, na medida em que preencha os requisitos de cada etapa parcial da Nova Trans; mas sem descartar esforços regionais em favor da Transnordestina original. Infelizmente, a reiterada confusão de projetos (Transnordestina X Nova Trans) só tende a agravar a sensação de ruído, que ao longo dos anos fez com que até mesmo a população da região fosse deixando de prestar atenção, e afinal ainda termine por aceitar qualquer projeto, contanto que tenha início [« a Transnordestina (...) a cada dia, parece mais distante ou condenado a ser mais uma dessas idéias que, de tanto as pessoas ouvirem falar, falam dela simplesmente com indiferença » ("A tortura da indiferença", Fernando Castilho, Jornal do Commercio, 21-12-2000)]. Como diz o poeta popular: Os meus avôs e meus pais [Pedro Bandeira. « Ele foi um dos participantes de uma audiência pública realizada no auditório do Memorial Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, destinada a debater sobre o tema. (...) a representante do Ministério dos Transportes, Ângela Parente (...) estranhou o reduzido público presente ao Memorial Padre Cícero, observando que a platéia da audiência pública em Crateús foi bem maior. Ontem, idêntico encontro foi realizado no Município de Salgueiro e, amanhã, será a vez de Petrolina, também no Estado do Pernambuco » ("Ferrovia transnordestina é tema de audiência pública", Regional, Diário do Nordeste, 29/04/2005)] A indefinição — e a indiferença — parecem estender-se à opinião do próprio público especializado. Enquete promovida pelo site da Revista Ferroviária obteve empate técnico por mais de uma semana — e no dia 10 Jul. 2006 atingiu o empate aritmético: Em junho deste ano o presidente Lula deu início às obras da Transnordestina, que terá 1.800 quilômetros
de extensão e um custo de R$ 4,5 bilhões. Sobre a construção da ferrovia, você acha que: Colocada em termos de "1.800 km / R$ 4,5 bilhões / tornar a logística mais competitiva" — versus "recuperação da malha já existente" —, a pergunta pode ter perdido uma oportunidade para se verificar se pelo menos o público especializado percebe certa indefinição proativa entre projetos diametralmente opostos. E se toma partido por algum deles. ______________________ |
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