Locomotiva 0-10-10 "Tentugal" nº 50 da VFCJ da ABPF
Locomotivas a vapor
Locomotiva "Tentugal"
Subsídios para o esclarecimento de um mistério
ferroviário
Texto: Nicholas Burman — Fotos: José Francisco
Olivatto
Construída pela Henschel & Sohn de Kassel, Alemanha sob o
número de fabricação 21687, a locomotiva de rodagem
0-10-0 e número 50, conhecida pelo nome "Tentugal" e
atualmente em tráfego na Viação Férrea Campinas-Jaguariúna
possui inúmeras teorias e histórias sobre a sua vida suscitadas
pelo estranho nome e pela igualmente estranha "buzina" a vapor
instalada em um dos seus domos. As teorias vão das mais plausíveis
às mais estranhas, tornando a 50 uma das mais controversas locomotivas
que já existiram no Brasil no tocante à vida e história.
Encomendada pela então empresa francesa Chemins de Fer Federaux
de L'Est Bresilien (antecessora da Viação Férrea
Federal Leste Brasileiro - VFFLB) e entregue sob o número 8, sua
chegada já inicia um mistério: por que apenas uma locomotiva
foi encomendada? Uma teoria afirma que a locomotiva foi paga por um rico
comerciante português, batizando a máquina com nome de seu
torrão natal. Seguindo esta teoria, a locomotiva teria caído
no mar durante seu desembarque no Brasil, sendo recuperada e imediatamente
vendida. Por mais interessante que seja essa teoria, ela falha em explicar
o por que da singularidade da locomotiva dentro da frota da Leste e sua
aparente vida efêmera, já que ela deixa de constar na frota
de locomotivas da LB quando da sua encampação pelo Governo
Federal. Para dificultar a análise há uma paucidade ou inexistência
de documentos ou relatórios da LB que forneçam dados por
mais vagos que sejam. No entanto, é possível formular algumas
hipóteses sobre sua utilização fazendo-se uma análise
"orgânica" da máquina, a começar por sua
tipologia.
Locomotiva 0-10-10 "Tentugal" nº 50 da VFCJ da ABPF
Uma locomotiva com 10 rodas acopladas de 950 mm de diâmetro
é por natureza uma locomotiva destinada a trabalhos onde
se requer o máximo possível de tração
e onde a velocidade é um item secundário. Não
possuindo eixos guia e portantes, todo o peso da máquina
recai sobre as rodas motrizes, contribuindo para uma locomotiva
possante, muito útil para serviços de carga lenta
e auxílio de composições em rampas particularmente
íngremes. No entanto uma locomotiva igualmente potente poderia
ser construída em um formato menor porém esbarraria
em restrições de peso por eixo impostas pelas condições
de via menos que ideais, assim as modestas cerca de 50 toneladas
da locomotiva (peso sem o tender) foram dispostas em 5 eixos, dando
um valor de 10 ton/eixo. Teoricamente a segunda utilização
já poderia ser uma boa teoria para explicar a compra da 50,
já que a LB tinha que arcar com o gargalo das rampas localizadas
nos dois sentidos da saída do Vale do Paraguaçu nos
municípios de São Felix e Cachoeira - BA. Tais rampas
justificariam uma locomotiva dedicada para o serviço de auxílio
das composições que saiam das duas cidades em direção
do Sertão ou do Recôncavo, no entanto dois elementos
vão contra essa hipótese: o longo entreeixos da locomotiva
que teoricamente seria um empecilho para a travessia do trecho urbano
entre São Felix e Cachoeira (vulgarmente conhecida como "Manobra
do Crioulo Doido", essa travessia é feita no meio das
ruas principais das duas cidades em uma linha cheia de curvas fechadas
e através da Ponte Dom Pedro II que liga os dois municípios)
e a "buzina", que neste cenário ficaria sem uma
raison d'etre.
Temos então uma locomotiva de grande potência com
uma possível explicação para seu uso, porém
com um acessório sem explicação. Assim, um
novo elemento deve ser inserido para a formulação
de uma nova hipótese sobre o emprego da locomotiva: a indústria
açucareira. Presente no Recôncavo Baiano desde o século
XV, a indústria açucareira forneceu uma grande contribuição
para as magras receitas da LB, tornando-se importante item na pauta
de mercadorias transportadas. Além disso, várias usinas
faziam uso das linhas da Leste para trafegar seus trens entre o
canavial e a usina. Em Pernambuco a GWBR possuía seus próprios
vagões de cana que andavam em tráfego mútuo
nas linhas das usinas; o autor desconhece se isso ocorreu na Leste,
no entanto o fato de que a LB chegou a absorver parte do parque
de locomotivas de uma usina (Usina Aratu) leva a crer que isso chegou
a ocorrer. Dado esse tipo de relação ferrovia / usina
e a singularidade da 50, há uma hipótese forte de
que a locomotiva tenha sido comprada para cumprir um contrato de
transporte de cana firmado entre a LB e alguma usina do Recôncavo,
onde os dotes de força da máquina seriam úteis
na tração de longas composições de "galeras"
de cana e onde o peso por eixo reduzido seria exigido nas linhas
das usinas. Por extensão uma das tarefas delegadas à
locomotiva além do transporte de cana seria o deslocamento
dos cortadores entre a usina e as frentes de corte, sendo a buzina
utilizada para marcar o inicio e final do turno de trabalho. A buzina
seria uma necessidade para se evitar confusões com o apito,
usado durante as manobras de carregamento, além de (muito
provavelmente - a falta da palheta vibratória dificulta a
tomada de conclusões sobre este item) produzir um som muito
mais audível a grandes distâncias.
Locomotiva 0-10-10 "Tentugal" nº 50 da VFCJ da ABPF
Em algum momento desconhecido a Tentugal sofreu sua primeira mudança
de proprietário, sendo passada da LB para a Usina Barreiros
no sul do estado de Pernambuco. Desconhece-se como foi feito o translado;
muito possivelmente foi efetuado por via marítima já
que as malhas da LB e da Great Western não tinham conexão
física, cada uma das ferrovias terminando em lados opostos
do Rio São Francisco respectivamente em Propiá - SE
e Porto Real do Colégio - AL. Uma vez em Barreiros, a locomotiva
se juntou às suas irmãs no que no seu auge foi a maior
ferrovia de usina do Brasil com 125Km de linhas e cerca de 41 locomotivas.
Recentes pesquisas indicam que foi em Barreiros que a locomotiva
veio a receber o número 50 e o nome "Tentugal".
Em seu livro¹ sobre a indústria açucareira em
Pernambuco, Peter Eisenberg faz menção (não
ferroviária) a um "Engenho Tentugal, Barreiros";
essa citação é corroborada pela homepage do
Museu do Una² em São José da Coroa Grande - PE
que menciona a existência de instalações ferroviárias
(estação, casa de feitor de linha) dentro do Engenho
Tentugal (vale salientar que aqui a palavra engenho é usada
no sentido de fazenda produtora de cana e não de unidade
fabril, já que com a criação das usinas e a
centralização da fabricação do açúcar
nestas o engenho perdeu sua razão de existência, sendo
reduzido à uma unidade fornecedora de cana). Outro argumento
indicador é o fato que das 41 locomotivas, 17 possuíam
nomes ligados á região: Gameleira, Maragogi, Barreiros,
Rio Formoso... O número 50 deve ter sido dado de modo aleatório
- uma lista de locomotivas de usina de açúcar brasileiras
indica que a frota era numerada consecutivamente de 1 á 40,
sendo que o número 8 já estava ocupado por outra locomotiva,
coincidentemente também uma Henschel 0-10-0 (21212 de 1928).
(1) EISENBERG, Peter: "The Sugar Industry in Pernambuco,
Modernization without change 1840-1910"; Los Angeles, University
of California Press, 1974
Não há dados sobre a permanência da Tentugal
na Usina Barreiros; eventualmente ela foi vendida para a Usina São
José em Campos - RJ, onde começou a atrair a atenção
de férreo-entusiastas, especialmente do estrangeiro. Nova
revenda efetuada por volta de 1984 a fez mudar de endereço
novamente, desta vez para a Usina Santo Amaro localizada poucos
quilômetros mais ao sul, onde funcionou esporadicamente até
algum momento nos meados dos anos 80. Posteriormente foi resgatada
e transferida para a Viação Férrea Campinas-Jaguariúna
em Campinas - SP, onde foi restaurada e devolvida ao tráfego.
Se for impossível fazer afirmações precisas
sem dados concretos pelo menos é possível se criar
hipóteses mais plausíveis sobre a história
da Tentugal. Podemos declarar resolvido o "enigma" do
nome "Tentugal", mas permanece o mistério da sua
compra pela LB e o motivo por que ela foi equipada com tão
estranha "buzina", além de dados como as várias
datas de venda e o motivo do número 50. Dada os parcos registros
mantidos pelas usinas e ferrovias, somente muita pesquisa e uma
dose de sorte irão revelar mais segredos desta dama ferroviária
velada...
Referências
EISENBERG, Peter: - "The Sugar Industry in Pernambuco:
Modernization without change 1840-1910"; Los Angeles, University
of California Press, 1974
KIRCHNER, John: - "Brasil Sugar Railways", obra em
curso não acabada