A curadoria de fotografias no Museu Paulista da USP é hoje responsabilidade
do Serviço de Documentação Textual e Iconografia, que conta com
a dedicação de uma documentalista e duas historiadoras, além dos
serviços temporários, porém essenciais, de técnicos e pesquisadores
autônomos. A integridade material dos documentos bem como a sua
divulgação são, por sua vez, garantidas pelo trabalho integrado
deste Serviço com o Laboratório de Conservação e Restauração, o
Laboratório Fotográfico, o Serviço de Museografia e Comunicação
Visual, a Biblioteca, o analista de sistema, entre outros. O Serviço
de Documentação Textual e Iconografia abriga mais de 100 mil documentos,
dos quais 30 mil são imagens nos mais diferentes processos. Deste
último conjunto destacam-se as fotografias, que hojem chegam a 20
mil unidades. O acervo fotográfico foi o que mais cresceu nos últimos
10 anos, tendo praticamente duplicado. Fruto de doações e compras
patrocinadas, este acervo reúne, majoritariamente, imagens de 1860
a 1950. Retratos avulsos e em álbuns, fotografias de eventos familiares,
paisagens urbanas, sobretudo de São Paulo, na forma de cartões postais
ou mesmo álbuns comerciais, e repertórios fotográficos que documentam
obras de engenharia, como é o caso da coleção Dana Merrill, colocam
à disposição de pesquisadores um leque considerável de temas para
serem desenvolvidos, muitos dos quais ainda inéditos.
O investimento na aquisição de retratos do século XIX, por exemplo,
contribui para o conhecimento das técnicas fotográficas históricas,
dos fotógrafos atuantes no Brasil, além de trazer à luz um impressionante
inventário de poses e feições humanas. No caso das paisagens urbanas
que foram objetos de forte comercialização, ainda há muito que se
explorar no campo das representações sociais, sobretudo no que tange
ao papel da fotografia, como objeto plástico, na formação de um
discurso visual sobre a cidade.
No caso da documentação de obras de engenharia e arquitetura, típica
função atribuída à fotografia no século XIX, destacam-se as fotografias
da S. Paulo Railway (Santos-Jundiaí/1871)¹, da construção do
Reservatório de Água da Cantareira (1893)²,
da construção do edifício que abriga o Museu Paulista
(1803)³ e recentemente integrada, a coleção de negativos do
fotógrafo Dana Merrill, referente à ferrovia Madeira-Mamoré. Essas
coleções permitem vislumbrar não apenas o lugar da técnica no século
XIX e as novas formas de interação do homem com a máquina, mas,
igualmente importante, os sentidos que a imagem logrou constituir,
colocando em pauta quais funções cumpriria a fotografia neste contexto
- a comparação, por exemplo, da imagens de Militão da S. Paulo Railway
com os registros de Dana Merrill da ferrovia Madeira-Mamoré (Rondônia),
quase 50 anos mais tarde, demonstra como a fotografia afastou-se
do modelo pictoricamente equilibrado, limpo e ordenado, aplicado
às representações dos grandes feitos tecnológicos para colocar em
cena as tensões entre máquinas, floresta e homens de diferentes
grupos sociais, étnicos e profissionais.
No entanto, apesar do fascínio imediato que as fotografias exercem
sobre o seu expectador, uma série de procedimentos são necessários
para que esses documentos sirvam de fato à produção de conhecimento.
Tais procedimentos fazem parte da atividade cotidiana de curadoria
em um museu e pressupõem equipe multidisciplinar, infra-estrutura
técnica e política científica, de acervos e de difusão cultural.
O tratamento documental, do qual este pequeno catálogo é um produto
parcial, longe de se resumir na extração dos dados imediatamente
observáveis na imagem, procurar agregar todo tipo de informação
que contextualize o documento antes e depois de sua musealização.
Neste sentido, podemos afirmar que a catalogação não tem exatamente
um término. A ficha catalográfica funciona como o histórico médico
de um paciente de vida longa. Durante a sua existência na instituição
vão sendo armazenados os dados sobre a trajetória do documento -
participações em exposições, publicações, CD-ROMs, pesquisas acadêmicas,
mídia eletrônica etc. Do mesmo modo, nesta ficha são registradas
as restaurações e o acompanhamento do estado de conservação do documento.
O histórico do documento, isto é, o rastreamento de pistas sobre
a formação do conjunto documental, seus usos e funções antes da
entrada no museu, reúne informações preciosas e que, na grande maioria
das vezes, não se encontram explicitadas no próprio documento, demandando
pesquisas de campo, de bibliografia, bem como a coleta de depoimentos.
Todas estas atividades decorrem, em parte, da necessidade que o
pesquisador tem de conhecer o seu objeto de estudo, de modo a encaminhar,
de maneira mais segura, suas hipóteses de trabalho. No entanto,
a relação entre a catalogação bem informada e a pesquisa acaba sempre
sendo de dupla via, com conseqüências benéficas para ambas, já que
é o próprio interesse pela pesquisa que permite que novas informações
integrem a ficha catalográfica. Esta é a dinâmica desejável, nada
fácil de se cumprir.
Hoje podemos colocar à disposição do público a coleção Dana Merrill
documentada sob vários aspectos - a história de sua trajetória,
da Amazônia até as mãos do jornalista e sertanista Manoel Rodrigues
Ferreira; o registro dos diversos produtos culturais dos quais foi
objeto ou participou indiretamente (exposições, livros, catálogos,
sites); a identificação dos conteúdos das imagens (locais, parte
das personagens fotografadas, denominações técnicas oriundas da
atividade ferroviária); e os dados técnicos (tipo de filme utilizado,
por exemplo). Longe de se esgotar, este é um trabalho que vem se
juntar a outras iniciativas passadas. Pouco se sabe, ainda, sobre
a trajetória do fotógrafo Dana Merrill, nem se tem o domínio completo
dos registros fotográficos que sobreviveram deste mesmo período.
Com a divulgação da coleção através da presente exposição e do banco
de imagens do Museu Paulista, temos a certeza de que novas histórias
se unirão a esta.
*Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho são historiadoras
e curadoras do Museu Paulista da USP.